Tiago Mestre

Smoke gets in your eyes

Curadoria de Kiki Mazzucchelli

Kupfer Projects, Londres, 2019

 

Smoke gets in your eyes apresenta um conjunto de esculturas que transitam entre a ideia de natural e artificial, entre o que é transitório ou efémero e aquilo que podemos fixar e conservar.

O fumo como coisa diáfana e misteriosa, a água como elemento transitório e o muxarabi, janela filtrada de onde se vê e centro de algumas das proposições modernas brasileiras, compõem a trama de relações aqui presentes. Se por um lado problematizam a apropriação da natureza através do pensamento sistemático da cultura, por outro parecem devolver à paisagem uma ideia de estilização ou de gramática construtiva. A questão do fazer escultórico é aqui colocada como crivo para organizar uma narrativa emocional e inconclusiva, relacionada à ideia de visibilidade e de desejo.

Tiago Mestre, Londres, março de 2019

  

More news from nowhere

Colégio das Artes de Coimbra, Coimbra, Portugal, 2018

Texto de Jacopo Crivelli Visconti

 

Para a exposição More news from nowhere, no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, em algum momento, Tiago Mestre chegou a pensar na possibilidade de que a disposição das dezasseis pinturas que ocupam as paredes fosse mudada, periódica e aleatoriamente. Nesse caso, o artista não seria diretamente responsável pelas alterações na configuração da exposição, mas a estratégia enfatizaria, novamente, a flexibilidade que o modelo convencional de exposição adquire na sua prática. Finalmente, optou por definir uma única vez a posição das obras: algumas telas são aproximadas até tocarem-se, sem que, por isso, possam ser consideradas menos independentes umas das outras relativamente às que apresentam espaços brancos entre si, ou às que surgem sozinhas na parede.

Também as bases em que as esculturas se apoiam possuem, exatamente como os espaços entre as pinturas, dimensões distintas. Aliadas à harmonia cromática e estilística das obras, essas modulações (horizontal e vertical) conferem, quase paradoxalmente, uma grande unidade à exposição como um todo, que se torna, de certa forma, mais visível do que cada uma das obras individualmente, como se o objetivo fosse criar uma grande instalação, e não (apenas) expor um conjunto de pinturas e esculturas.

Quando trabalha nas pinturas ou nas esculturas no seu atelier, o embate é com cada uma delas, e a solução expositiva mais apropriada é definida apenas num segundo momento, assim como a decisão sobre os trabalhos que irão efetivamente compor o conjunto a ser exposto. A maioria das pinturas aqui apresentadas toma como ponto de partida ou inspiração motivos ornamentais, mas o resultado final está longe de poder ser considerado “decorativo”. Essa distância é aliás enfatizada ao deixar evidente a maneira imprecisa como o óleo impregna a tela, ou ao expor as pinturas sem molduras, presas diretamente à parede. As esculturas também são, em última instância, enigmáticas: algumas poderiam lembrar modelos arquitetónicos primitivos, mas outras são claramente menos decifráveis, podendo assemelhar-se a galhos ou a figuras biomórficas de várias ordens. O fato de que todas elas sejam estilisticamente parecidas, faz com que qualquer interpretação do conjunto como um todo coerente se torne duvidosa. Ou seja, ao mesmo tempo que a obra parece afirmar algo, ela retrai-se e contradiz-se, como se estivesse constantemente a tentar esconder-se ou camuflar-se.

Jacopo Crivelli Visconti

Tão diferentes, tão atraentes.

Galeria Carbono, São Paulo, Brasil, 2017

Curadoria de Paulo Miyada

 

 

Tiago Mestre parece não se interessar apenas pelas coisas e suas formas, mas também pelo modo como são feitas e pelos argumentos empregados pelos artífices para justificar seu trabalho. Por isso, sua abordagem da pintura e da escultura muitas vezes desvia-se dos grandes temas da história das vanguardas e se foca em preocupações pontuais, aspectos processuais e pressupostos inventados. O artista produz com a atenção de um cozinheiro – e isso não lhe resulta em nenhum demérito.

Silvanaé uma obra em bronze, na qual emaranham-se duas intenções. A peça de parede, um relevo, deseja ser paisagem refletida no espelho d’água. A peça objetual deseja ser uma dupla de maçanetas de desenho peculiar, embora ainda ergonômico. Ao se cruzarem, o desígnio funcional e a fabulação imagética geram dois corpos mutuamente implicados, um o cheio do vazio do outro. Enquanto cria-se espaço para a modelagem escultórica do artista, torna-se impossível dizer o que veio primeiro, o que é pretexto, o que é efeito colateral.

Paulo Miyada

 

 Noite. Inextinguível, inexprimível noite. 

Galeria Millan, São Paulo, Brasil, 2017

 Texto de Kiki Mazzucchelli

 

Tiago Mestre: Noite.Inextinguível, inexprimível noite.

 

Noite. Inextinguível, inexprimível noite.– a primeira exposição individual de Tiago Mestre na Galeria Millan – se organiza em torno de um grande espelho d’água instalado no interior do espaço expositivo. Ao reproduzir esse elemento paisagístico numa escala próxima o suficiente daquilo que percebemos como suas proporções naturais, o artista cria um ponto focal que imediatamente atrai o olhar do espectador e serve de eixo para uma espécie de mise-en-scène, na qual objetos escultóricos executados em uma variedade de estilos são ao mesmo tempo personagens e objetos de cena, em uma narrativa polifônica e não linear.

Com formação em arquitetura, Mestre possui consciência e intimidade aguçadas em relação aos códigos que regem a representação e a construção dos espaços, e sobre como esses códigos são deliberadamente manipulados para exprimir certos valores (sejam eles culturais, ideológicos, políticos ou mercadológicos), ou para privilegiar determinados aspectos da experiência humana. E, no entanto, embora as referências à linguagem arquitetônica e seus dispositivos sejam evidentes em seu trabalho, sua abordagem é muito menos analítica do que intuitiva, talvez até mesmo em razão de sua fluência com a disciplina. De fato, essa qualidade lhe permite transitar à vontade entre as diferentes instâncias de um pensamento que parte da arquitetura ou, mais precisamente, da noção de projeto, para colocar em cheque o statusdos vários elementos que compõem esta exposição.

Essa operação de suspensão de certezas a respeito da condição do objeto se dá, mais visivelmente, nos trabalhos cujas formas retêm algum índice de funcionalidade. O próprio espelho d’água pode ser considerado um caso exemplar: sua escala generosa sugere um elemento paisagístico em si, porém estaria mais próximo de uma cenografia, por se tratar de uma construção temporária; ao mesmo tempo, devido à sua localização em uma galeria de arte, é imediatamente lido como uma instalação. Para complicar ainda mais as coisas, uma das pequenas esculturas em cerâmica branca apresentadas na exposição reproduz toscamente o formato ameboide do lago, incluindo as esculturas que o habitam. Ainda que destituída do rigor necessário para ser confundida com uma maquete arquitetônica, essa pequena peça nos remete mais uma vez à ideia de projeto e cria um jogo de espelhamento no qual as várias instâncias da representação se entrelaçam e se sobrepõem como numa matrioshka: desde a incorporação da representação da natureza na arquitetura, passando pela cenografia, até a maquete.

Por outro lado, a condição incerta ou hesitante desses objetos é igualmente produto de sua materialidade característica. As esculturas em argila ou cerâmica, que constituem a maioria dos trabalhos apresentados nesta mostra, são executadas de modo direto e simples, com uma organicidade e aparente espontaneidade de formas que contrastam manifestamente com a linguagem projetual da arquitetura.

A lógica do empirismo que caracteriza a arquitetura autóctone também permeia a feitura do muxarabi instalado no acesso à sala principal da galeria. Essa peça, incorporada como elemento arquitetônico no espaço expositivo, sintetiza de certa forma a relação entre desenho e objeto que subjaz ao próprio conceito de projeto. Como sabemos, os muxarabis são tradicionalmente construídos a partir da sobreposição de ripas individuais que criam diferentes padrões, mas nesse caso o artista inverte o processo de construção, partindo do desenho da trama para criar o objeto. O padrão é desenhado diretamente sobre uma espécie de cama de areia e os sulcos produzidos na superfície são subsequentemente preenchidos com bronze fundido, num método construtivo que acaba por preservar as imperfeições desse processo ao avesso.

Em outros casos, as esculturas assumem configurações ainda mais orgânicas, que evocam algum tipo de forma vegetal indeterminada, como plantas tropicais que brotam desordenada e voluptuosamente para compor o ambiente do espaço expositivo. Esse ambiente, claro, é planejado com cuidado pelo artista, justamente para criar uma situação espacial na qual a experiência e o olhar do espectador tornam-se o alvo constante de uma subversão de expectativas e certezas. A ideia de projeto evocada por Mestre nesta exposição sem dúvida remete à arquitetura modernista dos trópicos, com suas formas sensuais, que convivem com uma natureza exuberante. No entanto, em vez de tomar um partido de simples exaltação ou crítica a essa arquitetura ou de fazer julgamentos quanto ao seu sucesso ou fracasso na posteridade, ele situa seu trabalho numa zona de ambiguidade que parece incorporar ambos os lados, ao mesmo tempo que aborda o assunto com uma grande dose de humor e leveza.

Há em seus trabalhos uma certa autoironia que revela uma espécie de ceticismo quanto ao alcance crítico da atividade artística, já que esta normalmente opera dentro de circuitos ainda mais elitistas do que a arquitetura, cuja face pública é muito mais perceptível em nosso cotidiano. No lugar de uma assertividade de intenções, Mestre prefere cultivar uma situação polifônica e dinâmica, em que o espectador é constantemente levado a indagar sobre aquilo que vê, sem nunca encontrar uma resposta definitiva. Assim como o título escolhido pelo artista para esta mostra, emprestado de um poema do poeta português Helberto Helder (1930-2015), o conjunto de trabalhos que integram Noite. Inextinguível, inexprimível noite. se abre para uma diversidade de experiências e interpretações nas quais nada é oferecido de antemão, por vezes trazendo imagens misteriosas que poderiam pertencer à linhagem surrealista que marcou o início da carreira de Helder. Pau que chora, modesta escultura que representa um pequeno tronco de cuja superfície escorrem lágrimas, é tudo isso: paródia e lamento, troça e crítica, cartum e arte. É, quem sabe, o pau-brasil ancestral que chora o seu destino.

Kiki Mazzucchelli

Julho de 2017

 

Fundação

Paço das Artes, São Paulo, Brasil, 2016

Texto de Jacopo Crivelli Visconti

A narrativa dos espaços intersticiais

O projeto “Fundação” de Tiago Mestre para a Temporada de Projetos 2016 integra uma pesquisa do artista sobre o universo das “formas verticais”, como totens, árvores, colunas, menires, cariátides e obeliscos, iniciada já há alguns anos, mas que ainda não tinha encontrado uma saída concreta. O detonador do processo que levou à exposição apresentada no Paço das Artes (em sua sede temporária no Museu da Imagem e do Som), foi uma carta enviada em 1945 pelo arquiteto Luís Saia, futuro diretor do IPHAN em São Paulo, a Lúcio Costa, então consultor técnico e teórico do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan. Na carta, Saia pergunta sobre o caminho a seguir na recuperação da colunata da capela do sítio de Santo Antônio, da qual existia apenas um fragmento do capitel. Nas palavras do artista, “esta carta, em jeito desconcertantemente informal, continha dois desenhos sumários, três possibilidades que Lúcio Costa deveria avaliar para que se escolhesse um caminho a seguir na reconstrução. Fascinou-me a ideiadeste documento, desta incerteza, desta coloquialidade como pano de fundo para a construção de um conjunto de colunas / esculturas. Pensei numa sala em que estas esculturas se dispusessem de um modo irregular, abrindo a possibilidade de um percurso errante que permitisse diversas leituras comparativas”. Apesar desse ponto de partida de caráter histórico e, por assim dizer, institucional, o resultado final é uma instalação essencialmente abstrata, umaconjunto de totens que em nada lembram as colunas do Sítio de Santo António.

 

Essa distância entre o ponto de partida e o resultado final, porém, não deve ser considerada contraditória: as fontes ou referências reunidas por Tiago na etapa inicial de um projeto são sempre transformadas e reelaboradas intensamente, até tornar-se algo totalmente distinto, que pode ser até considerado acessório na economia do trabalho. Nesse sentido, é possível afirmar que o que realmente define sua poética não é nem a rica pesquisa inicial, que por outro lado constitui o ponto de partida da maioria de seus projetos dos últimos anos, nem o resultado formal final, mas o processo físico que separa as duas etapas. É o que o próprio Tiago define como “disponibilidade”, uma espécie de indefinição programática, que confere ao trabalho um caráter aberto durante todo o processo de realização. Coerentemente com essas premissas, nos últimos anos o artista escolheu se colocar em jogo, por assim dizer, em mais de uma oportunidade, simbolicamente transferindo seu ateliê para dentro do espaço expositivo, e produzindo ali suas obras, num processo que não tem, porém, um caráter performativo, mas busca apenas sugerir onde precisa ser identificado o cerne do trabalho. Para Coisa Feita Pensar (2015), por exemplo, Tiago ocupou o espaçoproduzindo no local uma instalação composta por quinze esculturas em argila, de estilos bastante distintos entre si, e que se relacionavam apenas pelo modus operandi definido pelo artista, isto é, o de ter um bloco de argila idêntico como matéria prima para cada escultura, e de medir o tempo que levaria para produzir cada uma. As diferenças estilísticas entre os objetos, que à primeira vista poderiam parecer desconcertantes, devem ser entendidas então como chaves para a real compreensão do gesto artístico, ao deslocar o foco para o processo de uma maneira mais nítida do que um conjunto formalmente coerente poderia fazer.

 

Olhando de uma maneira mais ampla para o trabalho de Tiago, isto é, sem focar especificamente uma exposição ou um núcleo de obras, outro dos eixos que o move parece ser um interesse para os espaços intersticiais, tanto num sentido literal (já que gosta de ocupar lugares que não costumam ser usados para exposição, por exemplo, ou cria frestas e janelas onde instalar suas esculturas) quanto num sentido metafórico (de uma maneira bastante direta, como vimos, em mais de uma ocasião levou o público a se questionar sobre o que seria uma obra “acabada” em contraposição a uma “em processo”, ou um espaço “expositivo” em contraposição a um espaço “de criação”). Nas palavras do próprio Tiago, “o backstagede um teatro, as galerias técnicas de um museu, o entreforro de um foyerpúblico, os fundos de um altar barroco, são espaços marginais, de segunda, mas com uma preponderância decisiva na orquestração do todo. Esses espaços são informais, instauram uma negociação outra, à parte da grande narrativa e do protocolo mais comum. Neste contexto, nesta dialética entre diferentes categorias de espaço, a ideia de “contra-forma”, de “molde”, de “negativo”, de bastidores e de informal apresenta-se-me como campo de exploração particularmente instigante”. A dos espaços intersticiais, então, pode ser considerada uma narrativa subterrânea, que permeia o âmbito de atuação do artista, paralelamente àquela, mais explícita, de um fazer físico que se relaciona ontologicamente (porém de certa maneira contrapondo-se a ele), ao da pesquisa de imagens de arquivo e referências, como a “Nuvem” de imagens que complementava dialeticamente as pinturas e esculturas produzidas para La Californie, exposição individual no Centro Cultural São Paulo (2016). Um papel análogo cumprem, no conjunto da produção de Tiago, as publicações quase artesanais que frequentemente acompanham suas exposições, na maioria dos casos construídas por justaposição de imagens de várias proveniências, um repertório visual que compreende imagens artísticas, científicas, documentais, históricas ou absolutamente anónimas e banais, às vezes colocadas em diálogo com suas próprias obras, em outros casos utilizadas para a criação de mais uma narrativa, cuja relação com a poética de Tiago parece ser, simplesmente, a de pertencer ao mesmo mundo.

 

Jacopo Crivelli Visconti

Texto relativo a Fundação, Paço das Artes, 2016

  

Entrevista com Jacopo Crivelli Visconti para Fundação, Paço das Artes, 2016

 

  1. 1. Para começar, queria te pedir para contar rapidamente como surgiu e se desenvolveu a pesquisa que te levou à concepção da exposição que você irá apresentar no Paço das Artes.

De há um ano para cá venho-me interessando por formas verticais: totens, árvores, colunas, menires, cariátides, obeliscos, etc. Entretanto cruzei-me com a referência a uma carta de 1945 endereçada por Luís Saia a Lúcio Costa dando conta de uma dúvida relativa ao caminho a seguir para a recuperação da colunata da capela do sítio de Santo Antônio, da qual existia apenas um fragmento do capitel. Esta carta, em jeito desconcertantemente informal continha dois desenhos sumários, três possibilidades que Lúcio Costa deveria avaliar para que se escolhesse um caminho a seguir na reconstrução. Fascinou-me a ideia deste documento, desta incerteza, desta coloquialidade como pano de fundo para a construção de um conjunto de colunas / esculturas. Pensei numa sala em que estas esculturas se dispusessem de um modo irregular abrindo a possibilidade de um percurso errante que permitisse diversas leituras comparativas.

  1. Gosto dessa sua expressão, “percurso errante”. De certa maneira alude à ideia de “obra aberta” de Umberto Eco, que me parece que pode ser usada para se aproximar da sua prática, no sentido em que, em muitos casos, ela permanece quase programaticamente num estado de indefinição que, no fundo, é o que melhor a define.

Concordo contigo! Procuro que o trabalho preserve uma certa disponibilidade até ao final. Essa disponibilidade, que pode ser tida como indefinição, e que começa certamente na minha relação empática inicial, é garantia de que outros sentidos possam ser assimilados em qualquer momento do processo. Esta ênfase na aparente indefinição instaurou-se, em grande medida, na exposição “Secret Life of Materials”, onde a questão do teste e da pergunta foi posta como mote geral da mostra.

Não se trata realmente de estabelecer proposições definitivas senão, ao invés, de avançar com possibilidades…mesmo que provisórias. Acho que, em última instância, o nível de conclusão que realmente me interessa não se encontra no campo da assertividade.

 

  1. 3. Você se interessa pelos espaços intersticiais, tanto num sentido literal (já que gosta de ocupar lugares que não costumam ser usados para exposição, por exemplo, ou cria frestas e janelas onde instalar suas esculturas) quanto num sentido metafórico (de uma maneira bastante direta, por exemplo, você convida o público a se questionar sobre o que seria uma obra “acabada” em contraposição a uma “em processo”, ou um espaço “expositivo” em contraposição a um espaço “de criação”). Você concorda com esta leitura?

Sim, achei muito interessante teres avançado com a ideia de “espaços intersticiais”, muito evocada também pela arquitetura para definir uma categoria de espaço tida como secundária, complementar ou subsidiária em relação aos espaços principais e que normalmente se encontra oculta. O backstagede um teatro, as galerias técnicas de um museu, o entreforro de um foyerpúblico, os fundos de um altar barroco, são espaços marginais, de segunda, mas com uma preponderância decisiva na orquestração do todo. Esses espaços são informais, instauram uma negociação outra, à parte da grande narrativa e do protocolo mais comum. Neste contexto, nesta dialética entre diferentes categorias de espaço, a ideia de “contra-forma”, de “molde”, de“negativo”, de bastidores e de informal apresenta-se-me como campo de exploração particularmente instigante. Diria que este meu interesse surge, num primeiro momento, da “desa”reditação” de um dado sistema para, logo, partir para a sua reorganização. Este segundo movimento construtivo busca invariavelmente situações de tensão com os dados iniciais, com a porosidade que neles consegui encontrar.

Mas toda esta questão já construiu também a sua narrativa, o seu discurso, já encontrou a sua dose de apaziguamento. Não a vejo como um aspecto definidor do meu trabalho, mas simplesmente como uma possibilidade de operar numa dada circunstância.

 

  1. Seus projetos mais recentes (La Californie, inaugurado há poucas semanas no Centro Cultural São Paulo, e agora este) reúnem uma ou mais imagens de arquivo, e são integrados não apenas por obras físicas, mas também por pequenas publicações. Queria saber se a imagens são escolhidas porque elas já se encaixam numa pesquisa em corso, ou se aparecem quase como uma epifania, detonando o processo de investigação e reflexão que se segue.

As duas coisas acontecem no meu trabalho. Cada vez mais me têm interessado os possíveis contatos entre a obra e o mundo e as imagens de arquivo têm cumprido muito essa função de suscitar relações, não no sentido de clarificar mas antes de complexificar.

Em “La Californie”, propus um grande atlas de imagens, de parede, a que chamei de “Nuvem”. Nele apresento “coisas” de que gosto, simplesmente imagens de que gosto produzidas por outros. Este repertório visual abarca imagens artísticas, científicas, documentais, históricas ou absolutamente mundanas. Sempre de outros.

Esta proposição inicial, ser uma coleção do que eu gosto, caiu por terra no momento em que fixei a última imagem abrindo imediatamente lugar a uma grande quantidade de relações entre imagens, algumas delas aparentemente desconexas.

A aparência rugosa da crosta do cometa onde aterrou a sonda “File” em 2014, juntamente com aquele alien de gesso do Cabrita Reis no cinema Monumental em Lisboa ajudaram-me a pensar estas colunas do projeto “Fundação”. A notícia da sensacional fuga do narcotraficante“El Chapo” de uma prisão de alta segurança do México, juntamente com diferentes representações históricas de corpos celestes e a chegada recente da sonda Voyager 1 aos limites do nosso sistema solar foram pano de fundo para o vídeo “Viagem”. Não trabalho sobre imagens, nem tampouco exclusivamente com imagens. Procuro trabalhar sobre ideias, projetos e processos, mas interessou-me aqui a possibilidade de, através delas, poder partilhar a genealogia de alguns projetos que tenho feito.

As publicações que têm acompanhado todas as exposições buscam, num primeiro momento, ampliar o sentido de espaço expositivo, trazendo-o para fora dos limites físicos da galeria da instituição. Por vezes, estes cadernos possibilitam um recorte específico de um dado processo.

Já no caso de “Fundação” tratou-se de, num primeiro momento, lançar luz sobre a história e a estranheza daquele documento. Trazer-lhe mais uma camada de complexidade. A publicação que acompanha esta exposição traz, a par da documentação sistemática das esculturas, um pequeno inventário de elementos verticais construídos pelo homem ao longo dos tempos.

Penso que tenho procurado tratar esta questão do documento e da publicação no mesmo nível dos diferentes mediums de que me tenho servido para cada uma das exposições. Na mesma ordem de ideias, aconteceu calibrar um tom específico para a parede da galeria, tematizar a quantidade de luz artificial sobre uma obra, ativar a entrada através de uma cortina específica ou colocar carpete num lugar de onde se olha uma determinada pintura.

  1. Me parece que atualmente você está se dedicando mais à escultura e à instalação do que à pintura, pelo menos se pensarmos nos trabalhos que comentamos até aqui, e também no que dá para ver no seu ateliê agora. Por outro lado, a pintura tem ocupado um lugar importante na sua produção nos últimos anos, e se pensarmos especificamente na importância da “Nuvem” que você criou no Centro Cultural São Paulo, e em geral das imagens que você tem usado, é evidente que toda uma iconografia bidimensional informa seu trabalho. Como você se divide entre esses dois campos (escultura e pintura)? Tem algum critério objetivo na escolha por um ou pelo outro, dependendo do projeto ou do que você quer discutir, ou se trata de uma decisão mais instintiva e “livre?

Já comentei muitas vezes, em conversas informais, que gostaria de, um dia, fazer uma exposição exclusivamente de pintura. A verdade é que me vejo sempre adiando essa vontade já que em cada projeto expositivo me deparo, quase naturalmente com um sistema de várias “vozes” e que, esse sim, acaba organizando o todo.

É como se a pintura por si só não bastasse. O meu foco inclina-se para o espaço “entre”, para a passagem entre a obra e a circunstância que a recebe, que a dá a ver. É nesse interstício que o trabalho, em última instância, se resolve.

Para mim, o trabalho de pintura acontece muito numa lógica de continuidade. Preciso trabalhar em pintura de um modo continuado, para que o “olhar” da pintura se instaure no processo. É como se cada pintura se apoiasse na anterior, criando com ela um fluxo, uma teia de relações. Posso dizer que, de todas as práticas que têm surgido no meu trabalho, a pintura é a única que não segue qualquer programa prévio, que não é intencionalmente mediada. Ela pensa-se fazendo (ou faz-se pensando).

Respondendo à tua pergunta, acho que a questão da escolha não se me põe. O meu trabalho é executado sem destino específico, e é só num segundo momento que eu olho de fora e edito o trabalho. Muitas das escolhas são feitas após a produção do trabalho. Daí a pintura, escultura ou qualquer outro medium terem, para mim, o mesmo valor e peso formal, apesar de cada um reclamar uma experiência específica.

  1. É interessante a ideia de escolhas feitas a posteriori, principalmente porque pressupõe a capacidade de manter uma relação direta com os materiais e as formas, que fica mais difícil quando se tem uma bagagem cultural e um interesse em buscar referências como os que você demonstra. De fora, me parece quase um exercício zen, no sentido que demanda conseguir abstrair de todas as implicações que uma dada forma ou um dado material possam ter, conseguindo enxergar suas qualidades ontológicas, por assim dizer.

Não se trata de rasurar as implicações que um dado trabalho possa ter, mas antes de exacerbar essas mesmas qualidades através de uma concentração geral, da sua colocação… “em cena”

 Quis dizer que, no caso da pintura, os trabalhos não permanecem no âmbito estrito da disciplina. Eles entram no contexto expositivo encenando diferentes narrativas, ou ficções. Põe-se-me o problema do tipo de performatividade que a pintura, ou a escultura, conseguem ter: evidência material, mimesis, memória do corpo, projeto, espacialidade, rascunho, anotação, ferramenta….Essas inúmeras cambiantes, ou estatutos, são muitas das (tirar o “das”) vezes ativadas já em contexto expositivo, nesse segundo momento em que se desenha uma narrativa mais ampla, e é por isso que dou muita importância aos nomes dos trabalhos, aos títulos. Julgo que este “recorte” tardio abre uma disponibilidade nova para o trabalho.

 

  1. Ao falar de sua obra, Maria de Fátima Lambert, num texto de alguns anos atrás, enfatizava a maneira como suas esculturas podem ser ou lembrar tanto elementos de suporte como bases ou pedestais (e agora colunas), quanto a própria escultura em si. Ela relaciona isso à sua formação e prática de arquiteto, mas poder-se-ia identificar aí também uma linhagem exclusivamente artística, na linha de Brancusi. Pelo que já conversamos até aqui, eu tenderia a entender que não, mas queria ouvir de você se você faz alguma distinção ou categorização entre os âmbitos de sua atuação (incluindo aqui a própria arquitetura) e dentro do vocabulário de referências que você convoca em seu trabalho.

Julgo que a Fátima Lambert se referia especificamente à exposição “Speech”, que realizei em 2013. Desde então vem-me interessando bastante a possibilidade de abordar as tipologias de apresentação como tema em si: a moldura, a vitrine, base, plinto, parede, mesa, iluminação, entrada…. Trata-se de operar através de um nivelamento (ou até inversão) de valores: o que é visto e o que dá a ver. Daí surgiram várias situações a que, mais recentemente, se veio juntar a questão do processo (Coisa feita pensar, All the things you are, La Californie).

Com o tempo tenho vindo a constatar que o meu trabalho se desenvolve com ênfase na convergência de dois veios, de duas sensibilidades, aparentemente antagônicos: por um lado a ideia de projeto, e por outro uma realização assente no fazer, na performatividade do imediato. A ideia de “projeto“ e a ideia de “fazer” são simultaneamente colocados como procedimento e como temática, e é nessa negociação que tento desenvolver o discurso.

Penso que a questão tem sido esta: o obra artística, como narrativa central, é simultaneamente objeto de fascínio e de desconfiança, e por isso mesmo é sempre recolocado num contexto mais alargado. Não penso, porém, na ideia de campo expandido, mas antes na complexificação. A obra é posta e ficcionada, simultaneamente.

Acho que isto coloca o trabalho numa linhagem estritamente artística, não obstante o universo da arquitetura poder estar presente como pano de fundo.

 

 

La Californie

Centro Cultural São Paulo, São Paulo, 2016

Texto de Bruno Mendonça

 

No projeto La Californieo artista Tiago Mestre se apropria do nome da famosa vila construída em 1920, em Cannes, no sul da França, onde Pablo Picasso habitou e que transformou em atelier a partir de 1955. Neste projeto o artista toma o espaço do ateliê de artista como mote para discutir de maneira poética uma série de camadas associadas a este espaço, mas também de forma mais abrangente questões relacionadas ao sistema da arte contemporânea como um todo.

O espaço do ateliê de artista e seu viés romântico, enigmático/mágico e projetivo já foram analisados de diferentes maneiras por teóricos de diversas áreas, a fim de compreender como se deu essa construção aurática deste espaço ao longo da história, tornado o artista uma espécie de artífice e o inserindo em uma das tipologias mais complexas de trabalhador dentro da lógica de produção moderna, assim como para desconstruir e desmistificar este mesmo espaço a partir de uma visão pós-moderna ou contemporânea.Neste projeto Tiago Mestre obviamente está interessado nestas questões ao deslocar este espaço para dentro da instituição, como já foi feito por outros artistas no campo da arte contemporânea – sendo assim uma operação recorrente e que o artista tem consciência disso – mas que para o artista este não é o eixo central de La Californie.

Neste projeto Tiago Mestre está mais interessado em desdobrar e tornar público um dos principais procedimentos de sua prática artística que é uma noção conceitual e expandida de edição e montagem assim como seu interesse pelo espaço arquitetônico e suas possíveis configurações como ambiência. Apesar de uma materialização plástica de pesquisas temáticas, que poderíamos colocar como um primeiro momento no trabalho do artista existe também um segundo e importante momento que é o desenvolvimento da exposição e sua construção espacial. É aqui que Tiago Mestre começa a operar procedimentos de edição e montagem e inicia uma reflexão do espaço para transformá-lo em um ambiente – isso se dá tanto na expografia projetada pelo artista, assim como pelos mobiliários e disposição das obras. Em La Californie, Tiago Mestre revela ao público este programa.

Para o artista outro ponto fundamental em La Californiee que é articulado conceitualmente a partir do deslocamento do ateliê para o espaço público da instituição é discussão acerca do artista como trabalhador a partir de uma noção de labore isto dentro de um contexto neoliberal e de um atual sistema capitalista que tem por consequência modulado um mercado de arte cada vez mais complexo que tem a capacidade de transformar quase todos os tipos de práticas e processos artísticos em “produto”. Estas ressonâncias sócio-políticas e econômicas que giram em torno do artista como talvez umas das figuras mais desafiadoras de análise neste sentido são investigadas pelo ensaísta argentino Reinaldo Laddaga em seu livro “Estética de Laboratório”, a partir de alguns objetos de estudo como o artista Thomas Hirschhorn e seu projeto Museu Precário, por exemplo.

Assim como Thomas Hirschhorn, Laddaga analisa também a produção do artista Pierre Huyghe que em um de seus textos analisando seu próprio processo de criação levanta questões interessantes que se conectam de forma bastante poética com o projeto La Californie de Tiago Mestre. Huyghe escreve: “A construção torna imediatamente visível suas opções e os processos que a constituem. Os erros, as redundâncias, os esquecimentos, as bifurcações […] não se trata de uma construção linear, mas de uma que tem múltiplas direções, aberta às possibilidades, às variações, cujos recursos de mudança e cuja acessibilidade são permanentes. É uma construção do potencial. Cada etapa revela índices de uma virtualidade. O visível está mais próximo do que é observado, não é uma finalidade, mas um esboço, um ponto de partida. É o necessário de hoje, completar e habitar. Aqui, o processo se inverteu, se inicia, se habita, e completar é um termo que fica por definir. Pôr fim ao acabamento, indeterminar. Viver com o transitório, no estado de edifício em permanente construção, interrompido, ou melhor na espera. Como um estado de inacabamento pode se tornar uma maneira de fazer.”

Bruno Mendonça

 

Coisa Feita Pensar

Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, 2015

Curadoria de Paulo Miyada

 

DIÁLOGO 2

 

– Estão rachando.

– O quê?

– As coisas de argila, estão rachando.

– As esculturas?

– Bom, se você quiser chamar aquilo de escultura.

– Ué, o que mais seriam, senão esculturas? Estão em bases, são feitas de argila, ficam equilibradas, lembram formas que reconhecemos da História da Arte.

– Isso! Lembram, mas nunca estão “à altura”, por assim dizer. Você acha que está vendo uma forma muito sóbria, cujos contornos resultam do choque entre o peso da matéria e o gesto conformador do artista e – de repente – percebe que aquilo não se leva tão a sério. Sabe, você olha para o lado e tem outra peça, um disco achatado ovoide com cortes que, ao remover pedaços da argila, fazem o desenho de uma cara, um tipo de máscara bidimensional!

– Você quer dizer que parece escultura, se comporta como escultura, mas não obedece às normas da escultura?

– Não obedece a nenhum tipo de norma, oscila por inúmeras possibilidades. O artista conta o peso da argila que ele usou e o tempo que demorou, mas isso não explica nada. É um arbítrio total.

– Uma variação do informe.

– O informe por variação.

– E isso ao lado daquele desenho gigante, aquele campo vasto de grafite negro, super-saturado, com as cores flutuando.

– Que é um pouco um proctoplasma, uma gosma, um campo pictórico em que pontos de cor, traços e manchas vivem em suspensão.

– A forma como abismo, salto no vazio pontuado de esboços incompletos de símbolos, gráficos e feições.

– Outra “coisa”.

– Outra forma que poderia ser definitiva e qualificada, mas aparece como “coisa” por ter algo de informe.

– A gente ainda tem que entender o que é o informe.

– O informe eu não sei o que é, porque defino sempre pelo que não é.

– A gente não sabe, mas entende quando vê.

– Como o medo.

– E a esperança.

– Essas coisas….

– Acho que exageramos, né?

– Vamos dizer assim, o informe atrapalha a definição da nomenclatura e da classificação das coisas porque nós até reconhecemos sua presença, mas falhamos em traduzi-la em palavras. Ele é reconhecível, mas não cabe em fórmulas lógicas sintéticas. É a parcela do acontecimento que extrapola o roteiro…

– O roteirizável.

– Ultrapassa o roteirizável, se é que essa palavra existe.

– E na arte, apostar nesse lugar é colocar-se em relativa fragilidade, em um campo sem garantias.

Paulo Miyada

2015

 

All the things you are

Kunsthalle São Paulo, Brasil, 2015

Curadoria de Marina Coelho

 

 

O projeto consiste na elaboração de uma narrativa onde o desaparecimento da obra anterior é condição sine qua non para o surgimento da posterior. Neste exercício passional, o artista confronta-se todos os dias com a obra em uma tentativa de desapegar-se daquilo já construído para pensar novas possibilidades, novos estados de espírito, em um jogo plástico, circular e fatalmente inconclusivo.

Se na teoria benjaminiana a aura da obra de arte tem sua origem na ideia do ritual religioso, colocando-a como um objeto a ser cultuado, Tiago Mestre põe em questão esse valor aurático da obra como estado final do processo criativo, e transfere-o para o processo em si, para o ritual diário do fazer e desfazer, do tentar, errar e acertar. Consequentemente, o artista também questiona a valorização do objeto artístico como mercadoria, o fetichismo que reifica a obra de arte e torna seu valor aurático um valor de mercado. Em All the things you are o fetichismo volta-se para o processo, para a performance diária do artista na vitrine do espaço expositivo, cujo registro será apresentado no evento de encerramento do trabalho.

O título do projeto – inspirado numa interpretação desta música por Django Reinhardt – sugere três pontos de partida para a leitura da obra de Mestre: all, uma tentativa de incluir todo um território, um retrato completo e multifacetado; things, o processo de coisificação do universo mental do artista, um mapeamento dos estados da pessoa; e por fim you are, a inclusão do espectador na própria narrativa do processo. Assim, o artista cria uma metáfora da própria condição humana, com a qual reflete sobre a sucessão dos dias (o tempo), e sobre o modo como a mesma matéria permite construir diferentes ideias, possibilita diferentes coisas, mas existe no mundo de forma precária, finita e transitória.

Marina Coelho, 2015

 

 

Conversa entre Marina Coelho e Tiago Mestre, em 21 de janeiro de 2014, a propósito do projeto All the things you are, realizado na KUNSTHALLE São Paulo, em janeiro de 2014.

Marina Coelho: Você gostaria de me contar um pouco como a arte entrou na sua vida?

 

Tiago Mestre: Desde cedo, o que teve uma influencia grande foi o fato do meu pai trabalhar em um museu de arte antiga. Para uma criança de três anos pode ser um universo fascinante. Ser de arte antiga ou arte contemporânea não faz muita diferença na realidade, porque no fundo lidas com coisas que são diferentes do mundo normal. E como criança, por um lado começas a te perguntar o que é aquilo, e por outro despertam ao teu interesse aspectos que talvez não sejam sequer os aspectos centrais de cada uma das peças que tu estas a olhar. O olhar de uma criança é sempre diferenciado, também pela escala.

Então, ate os meus 10 anos, tudo se misturava com um interesse indistinto: as molduras, as talhas douradas; os azulejos, as imperfeições dos azulejos, o desgaste do tempo, os procedimentos de conservação, os materiais, o gesso, os moldes. Para mim era tudo igualmente interessante, independentemente do valor da peça, ou da tipologia ou gênero. Era um museu que tinha alguma pintura barroca e do norte da Europa dos seculos XVI e XVII.  Tinham coisas que, para uma criança, assustam também: como relicários e restos de santos talvez.

O meu pai foi sempre ligado à cultura de alguma maneira, então para além desse aspecto desse museu, houve algumas impressões de exposições de arte contemporânea também.  Nós vivíamos em um lugar que era periférico em relação à capital, e de vez em quando eu via algumas exposições que traziam bons artistas contemporâneos. Nos anos 1980, eu vi uma exposição grande que tinha bons artistas portugueses, como Pedro Cabrita Reis, Jose ?.

Eu tinha algum background também porque o meu pai pintava. Teve alguns períodos da vida dele em que pintou. Desde cedo houve uma empatia, não só com a atividade do pai, como com o ajudar de uma criança a fazer qualquer coisa, os cheiros das tintas, ver reproduções de pintores do século XIX. Então, havia uma familiaridade afetiva com o fazer artístico. Eu até tive um percurso um bocadinho diferente, porque a maioria das pessoas eventualmente chega ao final da adolescência e vai fazer um curso de pintura, e em muitas das vezes acabam por não querer pintar porque se encheram com aquilo. Comigo foi uma coisa que brotou espontaneamente, que não foi profissionalizada, nem especializada até dada altura, mas que era também uma maneira já de olhar o mundo, de me relacionar com as coisas, que era muito diferente dos meus colegas e amigos dessa mesma geração.

Depois estudei arquitetura, e a partir dos vinte e tal anos comecei a olhar com mais seriedade para a arte. Fiz ilustração, fiz design, fiz arquitetura, continuava a pintar, e eventualmente, um pouco mais tarde acabei por cursar pintura em uma escola em Lisboa e por fazer uma escola de estudos críticos de arte que era a Maumaus. Isso foi importante para mim, porque foi um momento de viragem, e de encarar a atividade com mais profundidade, e pensar que poderia fazer daquilo também uma carreira.

Então acho que foi isso, o seio familiar, a atividade dos meus pais. Minhas irmãs estão ligadas também à cultura. Portanto foi um interesse que permeou os filhos todos.

 

MC: A arquitetura é muito presente no seu trabalho artístico. Como é para você essa a relação da arquitetura com a arte?

 

TM: É uma relação tensa. Se para o senso comum, o público mais geral, as duas são vistas como um saber e fazer artístico, na realidade há grandes diferenças. Principalmente na arte contemporânea há grandes diferenças lógicas e funcionais. Se há uma parte do meu fazer artístico que lida com arquitetura, ou tem um pouco a ver com construção, por outro lado, há um lado meu em que eu tento afastar-me bastante da arquitetura para poder expressar-me de uma maneira mais autônoma. E vice-versa.

 

MC: Sim, mas inclusive agora no seu mestrado, você está desenvolvendo um tema em que esses temas convergem.

 

TM: A arquitetura é uma formação e uma atividade potencialmente de um campo muito alargado, de conhecimento multidisciplinar. Eu tento me valer um pouco, nos trabalhos de arte visual que faço eminentemente mais arquitetônicos, de um olhar mais especializado para as questões do espaço. Para alguns trabalhos meus, trago um pouco esse saber olhar do arquiteto.

 

MC: Sim, que foram algumas exposições que você já realizou na sua carreira: como Secret Life of Materialse Speech, aquele projeto no Wiels em Bruxelas, e aquela das colunas no Teatro da Almada.

 

TM: E tinha também o do Göethe Institute em Lisboa, que era aquele forro no teto. Sim, tocam todos o lado do display, do design, do expor, do espaço.

 

MC: Mas agora, nessa última exposição Speech, apesar da presença desses elementos, já havia muita pintura. Você sente que o seu trabalho esta caminhando em uma outra direção nesse momento?

 

TM: A medida que vou enveredando mais por este caminho vou ganhando mais autonomia. No início era uma coisa tacteante, entre o meu fazer profissional do dia a dia e a arte.

 

MC: Você gostaria de me falar um pouco sobre essa ideia que voce teve para fazer esse projeto na KUNSTHALLE Sao Paulo?

 

TM: Essa exposiçao na KUNSTHALLE fecha uma tríade de interesses pessoais que lidam: por um lado com a natureza do material, que foi a exposição do Rio de Janeiro, Secret Life of Materials; por outro lado, a cultura da exposição, o expor o material; que foi a exposição Speech; e esta agora que é a forma. Então, forma, expor e material, eles são desdobramentos da generalidade do fazer artístico.

Dada a natureza da KUNSTHALLE, por ser um espaço autônomo, eu pensei em fazer uma peça que fosse um projeto que pudesse mostrar o processo de uma maneira mais livre, mais aberta, e que não tivesse a pressão de se configurar como uma exposição no sentido tradicional. Esse trabalho primeiro evoca um fazer despreocupado, um prazer de lidar só com o material. Um outro ponto é questionar um pouco o valor do objeto final como valor de mercado, valor consumível. Como é um trabalho em que para que aconteça a peça presente a anterior teve que ser destruída, ele de alguma maneira escapa à possibilidade de ser consumido.

 

MC: Mesmo a peça final.

 

TM: Mesmo a final. Por outro lado, ele também tem um lado meio metafórico, existencial de falar sobre a condição da pessoa, sobre o dia a dia, o refazer todos os dias uma coisa diferente, se reinventar. E eu elejo a argila porque é o material mais precário possível. Então, eu entro dentro dessa poética da vida de alguma maneira. É a lama, vem do chão, voltará para o chão, e é um material cheio de significados culturais e históricos.

 

MC: Mas o seu trabalho anterior já era bastante escultórico.

 

TM: Era, mas aqui ela é eleita como elemento central, o único foco é aquela peça. A exposição não se vale de mais nada do que aquela única coisa que ali está. E no final, quem sabe a peça guarda de alguma maneira, alguma memória do que foi ao longo dos 21 dias. Você olha para uma peça, para uma forma, mas também para uma memória de tudo que se perdeu pelo caminho.

 

MC: Como você enxerga o seu trabalho daqui para frente? Que rumos você vê para ele?

 

TM: Lá em Portugal nós dizemos: – Previsões, só no final!

  

Speech

Galeria Virgílio,São Paulo, Brasil, 2013

Curadoria Paulo Miyada 

É tão absurdo que talvez seja a mais pura verdade. Dizem que o monumento mais antigo de São Paulo – o obelisco da Ladeira da Memória – tem uma origem confusa: ninguém tem certeza do que exatamente devemos lembrar olhando para ele. Numa cidade construída sempre visando o futuro, a primeira lembrança foi esquecida e transformou-se em uma homenagem, veja só, à memória. É daqueles paradoxos que provocam um sorriso involuntário e acabam fazendo pensar sobre os limites da associação entre nomes, informações, coisas e discursos. Enquanto sorrimos, deve sorrir também o obelisco, feliz por estar liberado do motivo provavelmente vil de sua construção e haver se tornado um enigma.

Realizada por Tiago Mestre, artista português residente em São Paulo, a exposição Speechdemonstra um interesse especial por essa espécie de sorriso dos objetos. Isso porque a exposição simultaneamente alimenta e frustra as expectativas que lançamos sobre os artefatos culturais. Reunidos em displays expositivos, esculturas, maquetes, objetos, vídeos e pinturas formam um arcabouço de imagens em suspense, à maneira de relíquias pertencentes a alguma civilização extinta.

Não é à toa que a mostra tem início com um objeto encontrado pelo artista. Trata-se de um azulejo de manises fabricado há mais de cinco séculos e pertencente a um lote de azulejos decorativos levado para o sul de Portugal por encomenda da família real no reinado de D. Afonso V. Uma de suas faces pintadas à mão ostenta um elaborado padrão gráfico bicolor, floral nas bordas e geométrico no centro; a outra face, o verso oculto enquanto o azulejo esteve preso à parede, encontra-se rasurada com uma caricatura invulgar, provavelmente produzida pelo artesão de forma espontânea e descompromissada. Entre a aura relativa à idade do azulejo (mais antigo que o descobrimento do Brasil) e a banalidade do rabisco, o objeto flutua em uma zona de indeterminação, na qual planejamento e acaso se insinuam sem uma hierarquia clara.

Outra obra basilar para a exposição é o vídeo At the Museum, animação stop motion em que um boneco de massinha passeia por um espaço expositivo, encontrando e observando obras das mais diversas feições. Tal qual os protagonistas das peças de Samuel Beckett, o personagem do vídeo não consegue escapar de uma mesma rotina repetida muitas vezes: neste caso, aproximar-se de uma obra, encará-la por uma quantidade exata de segundos, retomar seu percurso, aproximar-se de uma obra, encará-la…

A indistinção da atitude do personagem reflete a limitação dos recursos que nós, o público, empregamos na tentativa de circundar e compreender os objetos que nos cercam. Para estar junto com o mundo, dependemos demasiado do olhar. A indefinição semântica das obras de Tiago, entretanto, exige que emprestemos, conscientes ou não, algo mais para a construção de sentidos. É preciso começar exercícios de fabulação. Ou então, é também possível simplesmente caminhar diante dos objetos como o amaldiçoado boneco de massinha, presos na contemplação de artefatos que não compreendemos.

Em todo caso, mais ou menos no centro do espaço, a obra que dá título à mostra explicita algum desejo de comunicação por parte dos objetos reunidos. Speech, a obra, é uma escultura em argila de uma cabeça humanoide sobre um alto pedestal. Na altura dos olhos de um homem adulto, o rosto encolhido parece declamar alguma coisa, sem produzir nenhum som. Há tanto que ele poderia querer dizer, mas permanece emudecido e com a boca bem aberta. Em compensação, dois volumes colocados lado a lado parecem ter descoberto uma espécie de autossuficiência – Romance emparelha uma urna e uma base numa relação dual e recíproca. Em casos como esse, os objetos parecem não precisar mais de nós. Na verdade, somos nós que precisamos deles. Somos nós que precisamos que eles continuem como estão e são, atrelados a algum sentido. Por isso damos nomes para às coisas, por isso inventamos memórias a serem

lembradas por meio delas.

A exposição de Tiago Mestre funciona como uma plataforma para a invenção ou para o esquecimento de pequenas histórias de empatia entre sujeitos e coisas. Comenta assim o princípio motor que leva os homens a construírem obeliscos, memoriais, cemitérios e, claro, museus.  “As estátuas também morrem”, lembrava o cineasta Alain Resnais – permanecem conservadas e expostas em vitrines de museus, mas morrem os homens que lhe emprestavam algum discurso e vida.

Ah, sim, há as pinturas, que podem resistir um pouco a essa leitura. De fato, o que as pinturas de Tiago Mestre mais fazem é resistir a qualquer leitura unitária, revelando-se como espécies de teste dos elementos que compõem a gramática do pintar. Às vezes, são simples demais para que convençam como representações verossímeis do mundo. Noutras, têm caráter excessivamente esquemático para que sejam funcionais como projetos. Em todos os casos, mostram-se carregadas em demasia pela ambiguidade dos objetos circundantes, também fazem suspeitar de leituras estritamente compositivas. Logo à entrada da exposição, um conjunto de monocromos oferecem uma pista de leitura. Sobre papelão, esses elementos são ao mesmo tempo pinturas em tons pastel e testes de cor feitos sem grande minúcia. Grau quase zero da pintura e ferramenta de trabalho para pintores de parede. Estudo da discursividade da arte e ensaio para a construção de algo. Metade museu, metade canteiro de obras, portanto.

É fato que não se escapa incólume da formação como arquiteto. Por mais que o trabalho de Tiago Mestre não se enquadre no perfil recorrente dos arquitetos-artistas fascinados por instalações construtivas site-specific, o artista não deixa de flertar com os procedimentos de esboço arquitetônico – os croquis, as maquetes de estudo e os corpos de prova estão imbuídos em seus gestos e escolhas. Todo esse repertório faz pensar um pouco no que pode ter passado pela cabeça do construtor daquele obelisco mencionado no começo do texto. Ele sabia que estava fazendo o primeiro equipamento urbano não-funcional de uma cidade em crescimento, mas não podia saber que esse mesmo crescimento acabaria por soterrar todo sentido que a retidão de seu monumento pretendia celebrar. Nesta exposição, os objetos já conhecem o seu destino como partes contidas pelo dispositivo expográfico e museográfico que dá corpo à arte; o que elas se contentam em dizer é que há algo, sim, a ser dito.

 

Paulo Miyada, agosto de 2013

 

Secret Life of Materials

Tiago Mestre | Flávia Vieira

Centro Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, Brasil, 2012

Curadoria Fernando Oliva

 

As tensões que atravessam as obras aqui reunidas se movem de tal maneira que é quase possível ouvi-las. São muitos, talvez em demasia, os dilemas de que precisam dar conta. Porém para um artista, hoje, parece não haver alternativa a não ser se armar de coragem e tentar atravessar estes pântanos. Tiago Mestre e Flávia Vieira, parceiros no projeto Secret Life of Materials, tomam as precauções possíveis para não cair nas armadilhas de sempre. As forças que buscam direcioná-los de volta ao ponto de partida são muitas, mas eles as vão contornando com inteligência e certa elegância. Aos poucos conseguem abrir caminho para que algumas possibilidades se apresentem, para o espectador, claro, mas também para os próprios trabalhos, como provam Ensaio,Magnetic Yellowe a obra que dá título à mostra.

Cada uma delas está em fricção com passado e futuro, numa mesma diagonal que atravessa tanto seus mecanismos de construção como seus desdobramentos no tempo e no espaço. Neste sentido, o conjunto formado por Secret Life of Materialstem um “partido”, no sentido arquitetônico do termo, e reivindica um lugar nesta história.

Mas que história? Da arte, claro, mas especialmente na dos modos de fazer e perceber a arte, e também na maneira como ela se apresenta, no espaço expositivo, diante do público. Para Tiago e Flávia, este lugar é conflagrado, e este espectador, não é mais um ingênuo. Informado, não pode ter seu conhecimento subestimado (um dos erros fatais da arte atual e seus discursos), pois assim como os artistas se habitou a correr alguns riscos controlados. Secret Life of Materialsabre espaço para um trânsito de mão dupla, em que somos colocados não em uma condição passiva de meros observadores, mas em que tem suas prerrogativas reconfiguradas pela exposição.

As dúvidas de Secret Life of Materialspodem parecer comuns, mas nunca banais, no que se revela outra de suas escolhas de ordem ética, por não traírem suas origens nem os percursos que se desdobram a partir daí.

Comentar sobre o espaço expositivo, preenchê-lo com obras ou arriscar uma saída negociada? Como escolher uma moldura sem que ela se sobreponha ao próprio conteúdo?

Questões que parecem antigas, mas das quais não conseguimos nos livrar. Há muito tempo não existem mais soluções evidentes, ou simplesmente “soluções”, e no entanto os artistas não podem parar de produzir. Secret Life of Materialsparece também se perguntar a cada instante, antes de dar o próximo passo: como manter a auto-crítica operante sem resvalar para uma posição cínica e hipócrita, aquela em que se encontram artistas como Liam Gillick, e que determinou certo modelo para a arte contemporânea recente? Um lugar em que não há diferenciação possível entre crítica e adesão, configurando uma espécie de armadilha, talvez inevitável, para onde nos dirigimos resignados. Este risco Tiago Mestre e Flávia Vieira não correm, que é o de obras que pretendem exemplificar as decorrências ideológicas e estéticas da burocracia no circuito da arte, sem que seja possível distinguir esta arte do que ela supostamente ataca.

Deste modo, o mais transparente possível, sem ser “naif”, este conjunto de obras e a maneira como são arranjadas entre si é ainda uma maneira de ampliar o próprio entendimento da palavra “material”. Parece evidente que se trata aqui de um entendimento alargado do termo, já que, para a dupla de artistas, matéria é também o próprio espaço, o mobiliário, soluções de displays, além da posição e do papel do espectador, seu repertório e seus desejos projetados sobre a exposição, o que constrói uma espécie de máquina de retroalimentação que termina por lançar dúvidas sobre seus próprios estatutos.

A fronteira que separa os estados irônicos dos melancólicos é nebulosa, e este é outro risco que o trabalho de Tiago Mestre e Flávia Vieira não se incomoda de correr – ao contrário, parece ir em busca dele. Obviamente não lhes falta ambição e segurança, porém toda sua “atitude” de pouco valeria se não “provassem do seu próprio remédio”, ou seja, se não se permitissem ser vítimas das mesmas escolhas que afinal são parte integrantes de seu caráter.

Fernando Oliva, 2012

 

[Fernando Oliva] Queriacomeçarperguntandosobreaformaçãoinicialdevocês,particulamenteomomentopré-acadêmico,antesdoencontrocomalinguagemdaarteemgeraledaartecontemporâneapropriamentedita.PenseinissoporqueoTiagomefalousobreopaideleserartista,etambémpelaformaçãodearquiteto.

Olhandohojeretrospectivamente,quetipodesentimento,oumesmoderelaçãomaiscontingente,épossívelestabelecerentreseuscontatosiniciaiscomarteeamaneiracomovocêsserelacionamcomomundoomundo-mundoeomundodaarte

 

 [Flávia Vieira]Desde cedo, por influência da atividade do meu pai, que começei a contatar com a imagem e com os processos do fazer da imagem. O meu pai trabalhava com cerâmica e, consequentemente, lidava diretamente com os materiais como a argila ou o gesso ao mesmo tempo que evidenciava a importância do lado tecnicista e manual da produção que exigia um skillapuradíssimo resultante de um envolvimento quase obsessivo de horas de trabalho. Julgo que esse momento foi muito marcante para mim, desse início deconsciência da imagem e de como ela pode ser construída manualmente.Claro que era um olhar sobre, poderia dizer, um fabricante ou executante de imagens mas esse lado “não artístico” atraía-me e fascinava-me. Julgo que esta realidade da transformação da matéria em bruto em coisas impossíveis e improváveis e o prazer que o meu pai encontrava no contato com aqueles blocos de argila me levaram a querer experienciar coisas semelhantes, talvez seja por isso que existe uma necessidade no meu trabalho de contatar com a técnica que, no entanto, nem sempre aparece de um modo literal.

 

[Tiago Mestre]No meu caso, a relação com a arte surgiu muito antes de uma consciência do que seria a arte. Passei grande parte da minha infância num museu. Havia arte sacra, quadros de Ribera, azulejaria, talhas, pintura italiana, obras de restauro e conservação, campanhas de arqueologia. Tudo isto, os objetos, os procedimentos, a escavação, as narrativas, a cópia, o molde, os materiais, a própria noção de tempo, configuraram desde cedo um universo coeso mas também indiferenciado aos olhos de uma criança.Desde cedo tomei consciência de que diversos aspectos das obras escapavam ao programático. Havia a perfeição do fazer e, do lado, aspectos disruptivos da imagem, da narrativa. Esses aspectos tinham já grande importância para mim. Mais tarde

surgiu a necessidade do fazer e começou pela pintura e pelo desenho. Ambos já no sentido de povoar, de construir, de delimitar um território.

Com a arquitetura veio a noção de que existia o pensar fazendo (em que os materiais estão presentes) e o pensar projetando em que apontamos para um cenário futuro apoiados numa estrutura conceptual, num código e numa memória pessoal. A arquitetura trouxe-me também a clareza de que, em qualquer das práticas, existe um fluxo cultural que nos precede e ao qual nos temos inevitavelmente que reportar.

 

[FO]Tambémgostariadefalarsobreoencontroentrevocês,comopessoasecomoartistas.Quandoecomoelesedeu,enoqueelefoitransformadordaspráticasedosmodosdeverdecadaum?

 

[TM | FV]O nosso encontro aconteceu em 2009 durante o curso de “estudos críticos independentes” organizado por Jürgen Bock em Lisboa. Desde logo me interessou o facto de termos discursos claramente opostos em relação aos nossos trabalhos apesar de partilharmos interesses semelhantes. A Flávia vinha de um contexto mais académico em que a lógica de valorização passava com uma abordagem mais politizada. Eu tinha um ponto de vista mais retiniano, mais informado pela pintura.

Desde então temos vindo a trabalhar pontualmente em vários projetos (apesar de os trabalhos individuais apontarem para direções distintas), tendo sempre como base uma negociação continua entre estes dois backgrounds.

 

[FO]Entrandoagoranaexposiçãopropriamentedita,gostariadeabordarotítulodela,VidaSecretadosMateriais.Vidasecretaemquesentido?Nodequenãopodeseracessadapelopúblico?Talvezporquepoucosabemossobreelesenãolheprestemosaatençãodevida?Porqueosditosmateriaisagiriamnasurdina,nosbastidores?

 

[FV]O título “Secret Life of Materials” surge como paródia de uma série sensacionalista de documentários sobre arte da BBC que tenta ler e descodificar as obras de grandes artistas da história da arte a partir de informações obscuras e inacessíveis entendendo a arte como uma prática genial. Quisemos apropriar-nos deste título porque queríamos trabalhar ironicamente sobre o entendimento do objeto artístico numa

desmontagem da sua “aura”. Interessa-nos as coisas desprovidas de carácter artístico onde o programático dá lugar ao inesperado e ao erro e, por vezes, ao ridículo.Alguns dos vídeos tocam bastante nesse aspecto, nessa ridicularização que encontramos no sistema de produção e recepção da obra de arte, problematizando os sistemas de representação da arte que se revelam voláteis e contraditórios, questionando a hierarquia das categorias artísticas tradicionais, criticando a linguagem expositiva institucional ou a relação entre o artista e o material/objeto. O projeto “Secret Life of Materials” procura construir um discurso crítico e reflexivo sobre a história da arte e sobre o objeto artístico através da criação de novas ficções e lugares possíveis para a imagem, ficções essas que contemplam o erro, o fracasso e o deslize.Neste sentido, poderemos dizer que devolvem “a dúvida para o próprio olhar do espectador” no sentido em que desafiam a percepção sobre as coisas, sobre a sua “normalidade” e sobre a previsibilidade.

 

[TM]Esta exposição foi o culminar de diversos exercícios que não incidem necessariamente sobre a questão do material mas que o têm como última evidência, como manifestação visível. A ideia de “vida secreta” acaba por ser tão ou mais importante do que a questão do “material”.

Trata-se fundamentalmente de estruturar um discurso, uma linha de pensamento, que aponta para uma segunda via de entendimento do mundo, do real. Gosto de pensar que, em paralelo a uma leitura determinística, cientifica, consensual, existe uma perpetuação de questões simbólicas, rituais, acidentaisque jogam um papel igualmente importante na nossa cultura. Esta exposição trata em larga medida de uma série de ficções (histórias) em torno dessas questões incorrendo deliberadamente no risco de objetivar uma visão anacrónica do mundo. Dois objetos interagem pelo simples facto de terem a mesma cor (possibilitando-nos chamar-lhe “amarelo magnético”), a gravidade sobre um objeto é acentuada drasticamente (provocando-lhe deformação), um plano de cor imóvel é subitamente desestabilizado por um acontecimento banal…..

 

[FO] ReproduzoaquitrechosdotextosobreaobraSecretLifeofMaterials:Enquadradosnocampogenéricodaescultura,estesexercíciosprocuramencontrarnovoslugareseidentidades,numprocessonãode manipulaçãomasantesdecolaboração.Queordemdecolaboraçãoseriaesta?Achamquepoderíamosfalar

tambémemnegociação” – quesepercebecertatensãonestesprocessos,por

exemploadúvidaseassuperfíciespoderãovoltaraseusestadosoriginaisapósoeventoquecausaadisruptura”,apósasurpresaquedesestabilizaanormalidadeeaestabilidadedoconjunto.

 

[TM]Partimos do principio ficcional de que material, ação, ferramenta, sujeito e cultura jogam papéis de igual importância neste palco, sendo pois legitimo pensar que o material opera sobre a ação moldando o sujeito, ou que que a cultura molda a ferramenta na feitura da ação! (risos).

 

[FO] No mesmo texto referem: “Neles,umdistanciamentodalógicadecontroledatécnicaemfavordeummovimentoperformativodapráticaedaação.Sãoexercíciosquenãosubentendemumpensamentofaseadoemqueamatéria-primalugaraoproduto,masantesumestadoinicialdeindefiniçãocujascaracterísticasrevelamoprocessodasuafeitura.São,portanto,materiaisquelutamentreasuaobjetificaçãoeoestadoporvir.Nestesentido,achamquepodemosfalaremalgopertodeumarevelação?Umprocedimentoquedevolveadúvidaparaopróprioolhardoespectador?Umasurpresa,mesmoquediscreta,masnãoinsignificante?(umcomentáriodoTiagomeficounacabeça:nãoéparaoespectadorcairdeemoção)

 

[TM]A questão da revelação é importante. Um dos esforços a que nos propusemos, talvez o mais difícil, foi o de balizar um campo da obra, da sua feitura e da sua recepção, distinto daquele onde o cinema, a publicidade e a comunicação das massas se posicionam. Acho importante entender que o séc. XX deixou um campo vasto de possibilidades em aberto mas também uma resistênciaacrescida na recepção. Não podemos mais colher tão amplamente e com o mesmo impacto. A aura do que possamos realizar poderá somente advir da noção clara do que a arte já pode e do que a arte não mais pode.De certo modo, sobra-nos o como enquanto ideia central do processo.

 

[FO]Outrotemaimportantequeseinsinuouemnossasconversaspréviasfoioornamento.Otrabalhodevocêsparecebuscarumasíntese,umacoerênciaeprecisão(tantodelinguagemcomodediscurso)quepoderiasertambémentendida

comoumacríticaaoornamental,aalgoquenãopossuiumafunçãoclaraouauto-evidente?PensoparticularmentenostrabalhosOrnamentoe“Desenho”.

 

[TM| FV]Podemos dizer que o projeto “Ornamento” é já um caminho para o que procuramos hoje enquanto artistas, é uma direção para essa problematização do que é retórico e superficial.O ornamento é um elemento decorativo da arquitetura e das artes decorativas sem função própria que existe para identificar e circunstanciar uma estética, uma determinada organização social, uma hierarquia de valores, ou seja, o seu valor reduz-se a um entendimento puramente histórico. No projeto “Ornamento” o artifício revela-se estrutural ao autonomizar-se da sua base arquitetónica e, consequentemente, ele perde a sua bengala fenomenológica e histórica e passa a auto-justificar-se.

A moldura entra no conjunto de reflexões sobre os displays expositivos, autonomiza-se do seu papel mais consensual, altera entre forma e objecto e ironiza a sua materialidade construtiva.

 

[FO] Gostariaderefletirsobrearelaçãoentreomaterialeoornamentalnocontextodaproduçãodevocês.Domeupontodevistaestafricçãoseanunciacommaisclarezanasériedeobjetosquevocêsvãomostrar,comoViga,Puxador eSabão,poissãoestesquemaisabertamentesereferemaobjetoscomusoefunção.Vocêspercebemestarelaçãoentrepresençaehierarquia,nobrezadosmateriais(bronze,argila,aço)deumlado,eapossibilidadedoornamento,deoutro?

 

[TM | FV]Essa diferenciação não se nos coloca. Não se trata de tomar partido de função ou forma mas de entender as possibilidades do elo que as liga. Tentamos compreender que espaço, que interstício, que possibilidades se abrem nessa transição (por vezes imediata) entre material e ornamento, entre matéria e forma.

 

[FO]Demodogeralmeparecequeumainversãonousoenapresençadoornamento,  poiscomovocêsmesmodizemoartifíciorevela-seestrutural.É nestesentidoquetalvezsepossafalaremcríticaaoornamental.OTiagousouotermoprogramaornamental,masnãomerecordomaisemquecontexto…

 

 

[TM]Temos trabalhado em propostas que reposicionam ou criticam a permanência da ideia de ornamento. Interessa-nos hoje pensar o ornamento enquanto projeto, pondo em evidência a questão do valor do material, enriquecendo ou empobrecendo drasticamente o seu valor. A questão do Adolf Loos com o seu conceito de “purismo estético” tem um valor de referência histórica. Sob o ponto de vista dessa discussão interessa-nos antes reclamar uma condição pós-moderna de absoluta elasticidade e transversalidade do discurso.

 

[FO]Observando mainstream da arte contemporânea, por exemplo as grandes exposições feiras, tenho impressão de que os elementos ornamentais, nosentido de supérfluos no que se refere à estrutura função das peças, se deslocaram para acabamento. É notável aimportânciaqueeleconquistounasartesvisuais,daextremaqualidadedomaterialdasobrasemsi,atéasmolduras,basesedemaisaparatos,passandopelossofisticadosprofissionaisquetrabalhamparaosartistas,comomarceneiros,serralheiros,arquitetos,designerseespecialistasdetodacategoriadesdeumOlafurEliassonatéartistasquenãoestãonacondiçãodecelebridades,oacabamentoélugardosmaisimportanteshoje.Vocêsconcordam?Poderiampensaralgonestadireçãotendoemvistaaspreocupaçõesdevocês?.

 

[FV] A questão do acabamento no objectos é comummente entendida como uma ação última de definição. Interassa-nos olhar para essa questão do ponto de vista crítico, já que as peças que produzimos não anseiam por essa assertividade. As peças que apresentamos nesta exposição vivem no risco de se erguerem ou de se afundarem.

 

 [TM] Vejo a questão do acabamento como uma possibilidade de discurso e de reflexão. Penso que está correta a transferência que valorização que sugeres (do ornamental para o acabamento). Parece-me porém que jogam papéis essencialmente distintos.

Obviamente que a questão do acabamento sempre esteve presente na arte, a dinâmica só se alterou radicalmente quando o acabamento começou, em muitos casos, a ser o factor sensível preponderante na feitura e na recepção da obra:. A novidade é quejá podemos pensar a obra tendo somente em consideração o acabamento.

 

Tiago Mestre – Arquitetura e conceitualização

 

Desenho, pintura, escultura, vídeo são meios de convivialidade no processo que Tiago Mestre vem desenvolvendo nestes últimos anos e, em particular, desde que se radicou em São Paulo.

Não é por acaso que Tiago Mestre é arquiteto. Como tal, cumprindo – através da sua obra plástica e visual – a intencionalidade primordial que a palavra significa. Retrocedendo até a Grécia, onde Arquitetura, juntamente com a Pintura e a Escultura, se consignava nas Artes Construtivas. Por oposicionalidade às Artes Expressivas – triunica choreia,asquais suscitavam grandes emoções no público, as Artes Construtivas eram direcionadas pela mimésis.

O significado da Arquitectura encontrava a origem na própria palavra Arte, arguindo por uma prova filológica que justificava a afirmação: “Não será Arte uma palavra feita com a primeira sílaba de cada uma das duas palavras que foram a palavra architekton? Arde archose te de tekton? (…) Ligadas ficam estas duas palavras Artee architekton  salta aos olhos da cara uma única conclusão: architektonsignifica o operário-chefe da colectividade.”[1]Dada a função social e humana, que a Arte pretende realizar, quer enquanto artes disciplinares isoladas, quer como Unidade da Arte, Almada reconheceu que “não pode deixar de ser a própria cabeça da colectividade. E é o que é: Arteé a cabeça da colectividade.”[2]Correspondia à necessidade de ser Todo, por ser substantivamente um Todo, visto sob aspecto específico e porque, pela liberdade do artista, configurava a complexidade dos campos adjacentes — das diferentes artes —, constituindo o todo da vida. A Arte começaria onde acabava a definição convencional das Belas-Artes — que não eram sistemas infalíveis —, nomeadamente, na formação dos artistas. A Arte não se esgotava, tampouco se perdia como especialidade organizada.

Séculos atrás, Vasari afirmou que a arquitectura mostrava maior conformidade à natureza, do que a pintura ou a escultura referindo-se, muito em particular, às semelhanças, relativamente ao processo de criação — natura naturans.

Almada Negreiros – autor que aqui chamei para contextualizar a idéia exposta – convocou a etimologia da palavra, de modo a corroborar a sua ascendência arquetípica sobre as demais artes, sugerindo que lhes está subjacente uma cumplicidade tanto estética quanto cultural.

Na obra de Tiago Mestre encontra-se uma concatenação entre expressões artísticas, que se articulam em coerência e completude. Desde 2009 que esse carácter de sobreposição se consolida e intensifica.

Tal torna-se tanto mais evidente quanto mais criteriosamente atentarmos quer à natureza dos conteúdos temáticos quer ás estratégias de formalização presentes nos trabalhos desenvolvidos:

 

  1. a) de modelos de apresentação/suporte das peças tridimensionais: peanhas, plintos, bases, pedestal;

  2. b) de conteúdos semânticos das obras, na transversalidade de expressões e nas suas tipologias;

  3. c) de procedimentos e processos conceituais e criativos; estratégias e técnicas artísticas…

  4. d) da formação/ensino artístico – no que concerne a prática de exercícios para aquisição de destreza técnica e na tradição do virtuosismo…

 

As formas dos elementos de suporte adquirem autonomia, isentas e alheias aos objetos habitualmente suportados. Convertem-se em peças escultóricas, obrigando o espetador a reconhecer-lhes plasticidade, modelação, volumetria…ou seja, constatando-lhes esteticidade isolada. Idênticas morfologias habitam as cenas modeladas nos vídeos e se plasmam em desenhos e pinturas.

São abordados conteúdos semânticos e iconográficos, contemplando variantes sobre estruturas geométrico-abstratas, paisagens e naturezas-mortas. É a “vida secreta dos materiais”…quer os orgânicos, quer os produzidos…

As estruturas geométrico-abstratas remetem para autorias pictóricas dos 2 lados do atlântico, revendo de forma rigorosa e através de uma metodologia que implica profunda reflexão e acuidade: Mira Schendel, Geraldo de Barros e, por outro lado, Fernando Lanhas e Ângelo de Sousa (entre outros nomes). Acontecem em pinturas e em objetos/esculturas.

As paisagens são vislumbradas através da “sua” janela e reconstruídas, a partir de efabulações estéticas em propósitos bi e tridimensionais. Denotam o conhecimento da tradição, quanto à sua explanação e no respeitante ao escopo que a legitima na cultura ocidental. Ficam resolvidas e abrem novas interrogações relativamente ao seja a sua presença na arte atual.

Os procedimentos e processos conceituais e criativos, mediante os quais se corporalizam os tópicos anteriormente citados, revigoram estratégias e técnicas artísticas. Alinhados/associados – neste questionamento – à desmontagem de práticas e exercícios  (metodologias de ensino artístico) propugnando por uma excelência da teknée procurando a maior qualificação virtuosa.

 

Numa incidência que se quer concomitante, há a considerar uma fundamentação conceitual que está subjacente: territórios espaciais – incluindo cartografias e mapeamentos; territórios de tempo e memórias – entre o individuado e o societário; ironias alegóricas da historiografia da arte ocidental e abarcando os conhecimentos da arte brasileira (a partir de 2010).

 

No relativo às temáticas que glosam o espaço, as situações diversificam-se consoante o enfoque que Tiago Mestre direciona. A constituição das camadas espaciais nos vídeos que resultam da modelação animada, instituem uma certa clausura e definição de campo. Nesta definição se inscrevem os tópicos paisagísticos, insinuados em uma maioria de casos de fechamento – de valência intimista, onde se visibiliza a articulação a um mundo interno, consequência da concatenação de áreas e superfícies traduzidas da memória e da lembrança. Space between (título da mostra no Centro Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, 2012, em parceria com Flávia Vieira) integra elementos bidimensionais, objetos e dispositivos audiovisuais que mapeiam, não apenas o espaço específico da galeria (em termos de montagem), quanto são pequeníssimas e sábias pontuações identitárias do autor. Assim, se externaliza uma massa criativa que agrega a praxise as ideias vividas e refletindo um olhar analítico-crítico sobre referências iconográficas.

Em At the Museum (2011),amemória dos lugares materializa-se em gesso, incluídas personagens que deambulam em museus que sejam imaginários – pensando nas reflexões de André Malraux e interrogando as nuances de compreensão para as obras de arte – e como delas nos apropriamos, falseando os seus fundamentos epistemológicos e/ou gnoseológicos – gerando ilusórias perceções internas e efabulações que instauram remodelações intelectuais. A personagem, algo cabisbaixa e pesarosa, parece transportar o peso da existência contemporânea, talvez buscando uma redenção nesse confronto com as pinturas coloridas que pontuam as paredes do Museu. Assim, essa figura interpela-nos, enquanto espetadores, talez que sejamos personagens verídicas, emergindo da visitação em galerias e locais afins. Nós os espetadores “emancipados” que somos portadores de mitologias, representações e dogmas, mesmo agora, nesta atualidade.

Verifica-se, pois a pregnância da sua remissão em se propulsionar até uma arqueologia sócio-histórica e política, caso da proposta apresentada, em 2009, na XV Bienal de Cerveira:

“ “Arqueologia” centra-se no papel das Instituições enquanto representações do Poder institucional. Reflecte sobre o modo como a Arqueologia e a própria História de Arte vinculam uma leitura do passado e do presente dos povos e países e no modo como as instituições (museus, centros culturais e centros de artes) se assumem como mediadores formais de uma Cultura “Oficial” e “Erudita”. (Tiago Mestre)

 

Considere-se a validação de escala, onde a inserção de elementos de pequeno formato, demonstrativa de um olhar detalhista e minucioso. As partículas objetuais pertencem a um posicionamento temporal prospetivo – a ação desenrola-se a partir de um olhar situado em 2509 “…em que a amnésia e um ponto de vista necessariamente subjectivo e parcial apresentarão erros, imprecisões e ambiguidades numa leitura que se apresenta como verdadeira.” (Tiago Mestre) Esta arqueologia do futuro contrasta com a revisão quase iconoclástica da matéria historiográfica sobre o património artístico.

Magnetic yellow(2009, Munique) projeto de vídeo e fotografia, aparece quase adivinatório. O protagonista é esse lápis amarelo que conduz a ação como se fosse uma espécie de maestro. Deambula entre espaço e tempo, visionando-se a afirmatividade da mão do artista, empunhando esse lápis que é condutor de visões e ideias até atingir – talvez – uma dimensão que ultrapassa, decididamente, o intermedial.

O tempo é, pois, trabalhado em múltiplas e outras aceções, sendo de valência primordial, designado no jogo entre instantaneidade e duração em determinadas peças da sua videografia.

Numa aceção de tempo que “quase” congela seres, coisas e arquiteturas, parece estarmos nos domínios de quase naturezas-mortas convertidas de retratos e paisagens também. As formas mostradas em Memória são, a título de exemplo, cortinas (desenhadas e tridimensionalizadas). Mas também, como antes de referiu, Tiago Mestre confronta-nos a elementos simbólicos que participam das encenações museológicas e do display em galerias de arte – Projecto Pedestal (Plataforma Revolver, Lisboa, 2010). Esta concretização, que é uma evidência arquitetural, encontra-se associada a Ornamental Program (2010) e Ornamento #2 (Espaço Avenida, Lisboa, 2010. A plenitude dos elementos tridimensionais é tanto mais exaltada nos desenhos, adquirindo-lhes uma autonomia e exaltação que não é mais da ordem do decorativo: é ontológica, plasmada em austeridade de conceito.

Os dimensionamentos, mais diretamente arquiteturais, residiram em propostas como The Commision –Lund’s Konsthall –SUÉCIA (2011). A planificação de uma imaginária desenhada rigorosamente, expõe a possibilidade de erigir edificações imaginárias e/ou reais que podem (ou não) ausentar o humano. Esta oscilação entre presenças e ausências do humano está metaforizada em diferentes níveis, sendo transversal e nítida, ao longo da obra de Tiago Mestre.

 

Fátima Lambert, 2013

[1]Almada Negreiros, “Arte e Artistas”, Textos de Intervenção, Lx, INCM, p.84

[2]Idem, ibidem, p.84