Tiago Mestre

 

Speech

 

Texto de Paulo Miyada

 

 

Galeria Virgílio, São Paulo, 2013

 

 

    Há tanto que eu queria te dizer

    É tão absurdo que talvez seja a mais pura verdade. Dizem que o monumento mais antigo de São Paulo – o obelisco da Ladeira da Memória – tem uma origem confusa: ninguém tem certeza do que exatamente devemos lembrar olhando para ele. Numa cidade construída sempre visando o futuro, a primeira lembrança foi esquecida e transformou-se em uma homenagem, veja só, à memória. É daqueles paradoxos que provocam um sorriso involuntário e acabam fazendo pensar sobre os limites da associação entre nomes, informações, coisas e discursos. Enquanto sorrimos, deve sorrir também o obelisco, feliz por estar liberado do motivo provavelmente vil de sua construção e haver se tornado um enigma. Realizada por Tiago Mestre, artista português residente em São Paulo, a exposição Speechdemonstra um interesse especial por essa espécie de sorriso dos objetos. Isso porque a exposição simultaneamente alimenta e frustra as expectativas que lançamos sobre os artefatos culturais. Reunidos em displays expositivos, esculturas, maquetes, objetos, vídeos e pinturas formam um arcabouço de imagens em suspense, à maneira de relíquias pertencentes a alguma civilização extinta.

    Não é à toa que a mostra tem início com um objeto encontrado pelo artista. Trata-se de um azulejo de manises fabricado há mais de cinco séculos e pertencente a um lote de azulejos decorativos levado para o sul de Portugal por encomenda da família real no reinado de D. Afonso V. Uma de suas faces pintadas à mão ostenta um elaborado padrão gráfico bicolor, floral nas bordas e geométrico no centro; a outra face, o verso oculto enquanto o azulejo esteve preso à parede, encontra-se rasurada com uma caricatura invulgar, provavelmente produzida pelo artesão de forma espontânea e descompromissada. Entre a aura relativa à idade do azulejo (mais antigo que o descobrimento do Brasil) e a banalidade do rabisco, o objeto flutua em uma zona de indeterminação, na qual planejamento e acaso se insinuam sem uma hierarquia clara. Outra obra basilar para a exposição é o vídeo At the Museum, animação stop motion em que um boneco de massinha passeia por um espaço expositivo, encontrando e observando obras das mais diversas feições. Tal qual os protagonistas das peças de Samuel Beckett, o personagem do vídeo não consegue escapar de uma mesma rotina repetida muitas vezes: neste caso, aproximar-se de uma obra, encará-la por uma quantidade exata de segundos, retomar seu percurso, aproximar-se de uma obra, encará-la… A indistinção da atitude do personagem reflete a limitação dos recursos que nós, o público, empregamos na tentativa de circundar e compreender os objetos que nos cercam. Para estar junto com o mundo, dependemos demasiado do olhar. A indefinição semântica das obras de Tiago, entretanto, exige que emprestemos, conscientes ou não, algo mais para a construção de sentidos. É preciso começar exercícios de fabulação. Ou então, é também possível simplesmente caminhar diante dos objetos como o amaldiçoado boneco de massinha, presos na contemplação de artefatos que não compreendemos. Em todo caso, mais ou menos no centro do espaço, a obra que dá título à mostra explicita algum desejo de comunicação por parte dos objetos reunidos. Speech, a obra, é uma escultura em argila de uma cabeça humanoide sobre um alto pedestal. Na altura dos olhos de um homem adulto, o rosto encolhido parece declamar alguma coisa, sem produzir nenhum som. Há tanto que ele poderia querer dizer, mas permanece emudecido e com a boca bem aberta. Em compensação, dois volumes colocados lado a lado parecem ter descoberto uma espécie de autossuficiência – Romance emparelha uma urna e uma base numa relação dual e recíproca. Em casos como esse, os objetos parecem não precisar mais de nós. Na verdade, somos nós que precisamos deles. Somos nós que precisamos que eles continuem como estão e são, atrelados a algum sentido. Por isso damos nomes para às coisas, por isso inventamos memórias a serem lembradas por meio delas. A exposição de Tiago Mestre funciona como uma plataforma para a invenção ou para o esquecimento de pequenas histórias de empatia entre sujeitos e coisas. Comenta assim o princípio motor que leva os homens a construírem obeliscos, memoriais, cemitérios e, claro, museus.  “As estátuas também morrem”, lembrava o cineasta Alain Resnais – permanecem conservadas e expostas em vitrines de museus, mas morrem os homens que lhe emprestavam algum discurso e vida.

Ah, sim, há as pinturas, que podem resistir um pouco a essa leitura. De fato, o que as pinturas de Tiago Mestre mais fazem é resistir a qualquer leitura unitária, revelando-se como espécies de teste dos elementos que compõem a gramática do pintar. Às vezes, são simples demais para que convençam como representações verossímeis do mundo. Noutras, têm caráter excessivamente esquemático para que sejam funcionais como projetos. Em todos os casos, mostram-se carregadas em demasia pela ambiguidade dos objetos circundantes, também fazem suspeitar de leituras estritamente compositivas. Logo à entrada da exposição, um conjunto de monocromos oferecem uma pista de leitura. Sobre papelão, esses elementos são ao mesmo tempo pinturas em tons pastel e testes de cor feitos sem grande minúcia. Grau quase zero da pintura e ferramenta de trabalho para pintores de parede. Estudo da discursividade da arte e ensaio para a construção de algo. Metade museu, metade canteiro de obras, portanto. É fato que não se escapa incólume da formação como arquiteto. Por mais que o trabalho de Tiago Mestre não se enquadre no perfil recorrente dos arquitetos-artistas fascinados por instalações construtivas site-specific, o artista não deixa de flertar com os procedimentos de esboço arquitetônico – os croquis, as maquetes de estudo e os corpos de prova estão imbuídos em seus gestos e escolhas. Todo esse repertório faz pensar um pouco no que pode ter passado pela cabeça do construtor daquele obelisco mencionado no começo do texto. Ele sabia que estava fazendo o primeiro equipamento urbano não-funcional de uma cidade em crescimento, mas não podia saber que esse mesmo crescimento acabaria por soterrar todo sentido que a retidão de seu monumento pretendia celebrar. Nesta exposição, os objetos já conhecem o seu destino como partes contidas pelo dispositivo expográfico e museográfico que dá corpo à arte; o que elas se contentam em dizer é que há algo, sim, a ser dito.

Paulo Miyada, agosto de 2013