Tiago Mestre, A narrativa dos espaços intersticiais
O projeto de Tiago Mestre para a Temporada de Projetos 2016 integra uma pesquisa do artista sobre o universo das “formas verticais”, como totens, árvores, colunas, menires, cariátides e obeliscos, iniciada já há alguns anos, mas que ainda não tinha encontrado uma saída concreta. O detonador do processo que levou à exposição apresentada no Paço das Artes (em sua sede temporária no Museu da Imagem e do Som), foi uma carta enviada em 1945 pelo arquiteto Luís Saia, futuro diretor do IPHAN em São Paulo, a Lúcio Costa, então consultor técnico e teórico do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan. Na carta, Saia pergunta sobre o caminho a seguir na recuperação da colunata da capela do sítio de Santo Antônio, da qual existia apenas um fragmento do capitel. Nas palavras do artista, “esta carta, em jeito desconcertantemente informal, continha dois desenhos sumários, três possibilidades que Lúcio Costa deveria avaliar para que se escolhesse um caminho a seguir na reconstrução. Fascinou-me a ideia deste documento, desta incerteza, desta coloquialidade como pano de fundo para a construção de um conjunto de colunas / esculturas. Pensei numa sala em que estas esculturas se dispusessem de um modo irregular, abrindo a possibilidade de um percurso errante que permitisse diversas leituras comparativas”. Apesar desse ponto de partida de caráter histórico e, por assim dizer, institucional, o resultado final é uma instalação essencialmente abstrata, uma floresta de totens que em nada lembram as colunas do Sítio de Santo António.
Essa distância entre o ponto de partida e o resultado final, porém, não deve ser considerada contraditória: as fontes ou referências reunidas por Tiago na etapa inicial de um projeto são sempre transformadas e reelaboradas intensamente, até tornar-se algo totalmente distinto, que pode ser até considerado acessório na economia do trabalho. Nesse sentido, é possível afirmar que o que realmente define sua poética não é nem a rica pesquisa inicial, que por outro lado constitui o ponto de partida da maioria de seus projetos dos últimos anos, nem o resultado formal final, mas o processo físico que separa as duas etapas. É o que o próprio Tiago define como “disponibilidade”, uma espécie de indefinição programática, que confere ao trabalho um caráter aberto durante todo o processo de realização. Coerentemente com essas premissas, nos últimos anos o artista escolheu se colocar em jogo, por assim dizer, em mais de uma oportunidade, simbolicamente transferindo seu ateliê para dentro do espaço expositivo, e produzindo ali suas obras, num processo que não tem, porém, um caráter performativo, mas busca apenas sugerir onde precisa ser identificado o cerne do trabalho. Para Coisa Feita Pensar (2015), por exemplo, Tiago ocupou o espaço a sua disposição produzindo no local uma instalação composta por quinze esculturas em argila, de estilos bastante distintos entre si, e que se relacionavam apenas pelo modus operandi definido pelo artista, isto é, o de ter um bloco de argila idêntico como matéria prima para cada escultura, e de medir o tempo que levaria para produzir cada uma. As diferenças estilísticas entre os objetos, que à primeira vista poderiam parecer desconcertantes, devem ser entendidas então como chaves para a real compreensão do gesto artístico, ao deslocar o foco para o processo de uma maneira mais nítida do que um conjunto formalmente coerente poderia fazer.
Olhando de uma maneira mais ampla para o trabalho de Tiago, isto é, sem focar especificamente uma exposição ou um núcleo de obras, outro dos eixos que o move parece ser um interesse para os espaços intersticiais, tanto num sentido literal (já que gosta de ocupar lugares que não costumam ser usados para exposição, por exemplo, ou cria frestas e janelas onde instalar suas esculturas) quanto num sentido metafórico (de uma maneira bastante direta, como vimos, em mais de uma ocasião levou o público a se questionar sobre o que seria uma obra “acabada” em contraposição a uma “em processo”, ou um espaço “expositivo” em contraposição a um espaço “de criação”). Nas palavras do próprio Tiago, “o backstage de um teatro, as galerias técnicas de um museu, o entreforro de um foyer público, os fundos de um altar barroco, são espaços marginais, de segunda, mas com uma preponderância decisiva na orquestração do todo. Esses espaços são informais, instauram uma negociação outra, à parte da grande narrativa e do protocolo mais comum. Neste contexto, nesta dialética entre diferentes categorias de espaço, a ideia de “contra-forma”, de “molde”, de “negativo”, de bastidores e de informal apresenta-se-me como campo de exploração particularmente instigante”. A dos espaços intersticiais, então, pode ser considerada uma narrativa subterrânea, que permeia o âmbito de atuação do artista, paralelamente àquela, mais explícita, de um fazer físico que se relaciona ontologicamente (porém de certa maneira contrapondo-se a ele), ao da pesquisa de imagens de arquivo e referências, como a “Nuvem” de imagens que complementava dialeticamente as pinturas e esculturas produzidas para La Californie, exposição individual no Centro Cultural São Paulo (2016). Um papel análogo cumprem, no conjunto da produção de Tiago, as publicações quase artesanais que frequentemente acompanham suas exposições, na maioria dos casos construídas por justaposição de imagens de várias proveniências, um repertório visual que compreende imagens artísticas, científicas, documentais, históricas ou absolutamente anónimas e banais, às vezes colocadas em diálogo com suas próprias obras, em outros casos utilizadas para a criação de mais uma narrativa, cuja relação com a poética de Tiago parece ser, simplesmente, a de pertencer ao mesmo mundo.