Tiago Mestre: Noite. Inextinguível, inexprimível noite.
Noite. Inextinguível, inexprimível noite. – a primeira exposição individual de Tiago Mestre na Galeria Millan – se organiza em torno de um grande espelho d’água instalado no interior do espaço expositivo. Ao reproduzir esse elemento paisagístico numa escala próxima o suficiente daquilo que percebemos como suas proporções naturais, o artista cria um ponto focal que imediatamente atrai o olhar do espectador e serve de eixo para uma espécie de mise-en-scène, na qual objetos escultóricos executados em uma variedade de estilos são ao mesmo tempo personagens e objetos de cena, em uma narrativa polifônica e não linear.
Com formação em arquitetura, Mestre possui consciência e intimidade aguçadas em relação aos códigos que regem a representação e a construção dos espaços, e sobre como esses códigos são deliberadamente manipulados para exprimir certos valores (sejam eles culturais, ideológicos, políticos ou mercadológicos), ou para privilegiar determinados aspectos da experiência humana. E, no entanto, embora as referências à linguagem arquitetônica e seus dispositivos sejam evidentes em seu trabalho, sua abordagem é muito menos analítica do que intuitiva, talvez até mesmo em razão de sua fluência com a disciplina. De fato, essa qualidade lhe permite transitar à vontade entre as diferentes instâncias de um pensamento que parte da arquitetura ou, mais precisamente, da noção de projeto, para colocar em cheque o status dos vários elementos que compõem esta exposição.
Essa operação de suspensão de certezas a respeito da condição do objeto se dá, mais visivelmente, nos trabalhos cujas formas retêm algum índice de funcionalidade. O próprio espelho d’água pode ser considerado um caso exemplar: sua escala generosa sugere um elemento paisagístico em si, porém estaria mais próximo de uma cenografia, por se tratar de uma construção temporária; ao mesmo tempo, devido à sua localização em uma galeria de arte, é imediatamente lido como uma instalação. Para complicar ainda mais as coisas, uma das pequenas esculturas em cerâmica branca apresentadas na exposição reproduz toscamente o formato ameboide do lago, incluindo as esculturas que o habitam. Ainda que destituída do rigor necessário para ser confundida com uma maquete arquitetônica, essa pequena peça nos remete mais uma vez à ideia de projeto e cria um jogo de espelhamento no qual as várias instâncias da representação se entrelaçam e se sobrepõem como numa matrioshka: desde a incorporação da representação da natureza na arquitetura, passando pela cenografia, até a maquete.
Por outro lado, a condição incerta ou hesitante desses objetos é igualmente produto de sua materialidade característica. As esculturas em argila ou cerâmica, que constituem a maioria dos trabalhos apresentados nesta mostra, são executadas de modo direto e simples, com uma organicidade e aparente espontaneidade de formas que contrastam manifestamente com a linguagem projetual da arquitetura.
A lógica do empirismo que caracteriza a arquitetura autóctone também permeia a feitura do muxarabi instalado no acesso à sala principal da galeria. Essa peça, incorporada como elemento arquitetônico no espaço expositivo, sintetiza de certa forma a relação entre desenho e objeto que subjaz ao próprio conceito de projeto. Como sabemos, os muxarabis são tradicionalmente construídos a partir da sobreposição de ripas individuais que criam diferentes padrões, mas nesse caso o artista inverte o processo de construção, partindo do desenho da trama para criar o objeto. O padrão é desenhado diretamente sobre uma espécie de cama de areia e os sulcos produzidos na superfície são subsequentemente preenchidos com bronze fundido, num método construtivo que acaba por preservar as imperfeições desse processo ao avesso.
Em outros casos, as esculturas assumem configurações ainda mais orgânicas, que evocam algum tipo de forma vegetal indeterminada, como plantas tropicais que brotam desordenada e voluptuosamente para compor o ambiente do espaço expositivo. Esse ambiente, claro, é planejado com cuidado pelo artista, justamente para criar uma situação espacial na qual a experiência e o olhar do espectador tornam-se o alvo constante de uma subversão de expectativas e certezas. A ideia de projeto evocada por Mestre nesta exposição sem dúvida remete à arquitetura modernista dos trópicos, com suas formas sensuais, que convivem com uma natureza exuberante. No entanto, em vez de tomar um partido de simples exaltação ou crítica a essa arquitetura ou de fazer julgamentos quanto ao seu sucesso ou fracasso na posteridade, ele situa seu trabalho numa zona de ambiguidade que parece incorporar ambos os lados, ao mesmo tempo que aborda o assunto com uma grande dose de humor e leveza.
Há em seus trabalhos uma certa autoironia que revela uma espécie de ceticismo quanto ao alcance crítico da atividade artística, já que esta normalmente opera dentro de circuitos ainda mais elitistas do que a arquitetura, cuja face pública é muito mais perceptível em nosso cotidiano. No lugar de uma assertividade de intenções, Mestre prefere cultivar uma situação polifônica e dinâmica, em que o espectador é constantemente levado a indagar sobre aquilo que vê, sem nunca encontrar uma resposta definitiva. Assim como o título escolhido pelo artista para esta mostra, emprestado de um poema do poeta português Helberto Helder (1930-2015), o conjunto de trabalhos que integram Noite. Inextinguível, inexprimível noite. se abre para uma diversidade de experiências e interpretações nas quais nada é oferecido de antemão, por vezes trazendo imagens misteriosas que poderiam pertencer à linhagem surrealista que marcou o início da carreira de Helder. Pau que chora, modesta escultura que representa um pequeno tronco de cuja superfície escorrem lágrimas, é tudo isso: paródia e lamento, troça e crítica, cartum e arte. É, quem sabe, o pau-brasil ancestral que chora o seu destino.
Kiki Mazzucchelli
Julho de 2017